
Foi lançado ontem, 28 de abril, pela presidente Dilma Roussef e pelo Ministro da Educação, Fernando Haddad, oPrograma Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), que deverá tramitar em regime de urgência no congresso nacional. Nesta entrevista, realizada antes do lançamento oficial do Programa, Roberto Leher, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa algumas das estratégias que se assemelham aos caminhos seguidos na educação superior — em especial, o financiamento de vagas de educação profissional no setor privado por meio de projetos no formato do Fies (Financiamento Estudantil) e do Prouni (Programa Universidade para Todos).
O MEC tem se dedicado a tentar ampliar o número de vagas gratuitas do sistema S e tudo indica que o Pronatec tratará disso também. Essas coisas estão interligadas?
Claro. Eles estão chamando de ‘gratuitas’ as vagas que o Estado compraria do sistema S. O Estado, ao invés de fortalecer sua rede pública, compra vagas no setor privado, para disponibilizá-las como se fossem públicas. Essa é uma lógica de política. É preciso também refletir sobre a natureza da formação. Tanto o sistema S quanto o projeto desejado para os Ifets resultam atualmente de acordos feitos pelo governo brasileiro com a Usaid [United States Agency for International Development] — e essa não é uma suposição porque há documentos que comprovam. Isso não quer dizer que seja o projeto praticado pelos Ifets, porque há muitas contradições e lutas dentro dessas instituições sobre a natureza da formação. Mas, já desde 2006, o governo brasileiro procurou a Usaid para assessorar na expansão dos Ifets. E o que a Usaid está propondo para o Ifets é um modelo estadunidense dos chamados community colleges, que são aquelas instituições pós-secundárias estadunidenses que ofertam cursos de curta duração e bastante pragmáticos, orientados para as demandas específicas do mercado de trabalho. Isso resulta de uma política que vem sendo construída em comum acordo com a Usaid e que, portanto, agora se estrutura como uma política geral para a educação tecnológica brasileira. Parece que é um programa extremamente preocupante no sentido de que vivemos um retrocesso brutal em relação àquilo que nós tínhamos de bom dentro das escolas técnicas federais, que foi toda a reflexão de educação politécnica feita a partir dos anos 1980. Isso significa dizer que a matriz conceitual do decreto 2208/9 7, feito por [Fernando Henrique] Cardoso, que promove a desvinculação entre a educação profissional e a educação propedêutica — modelo esse que ficou confirmado no decreto 5154/04 — serve como uma grande política para a formação profissional dos jovens. Em última instância, nós podemos dizer que o Estado brasileiro está organizando e subsidiando uma formação unilateral, assentada nos pressupostos do capital humano , como política pública de educação. Mas, conceitualmente, essa política não pode ser pública. Primeiro, porque tem objetivos particularistas de formação e, segundo, porque resulta dessas parcerias público-privadas. Então, o financiamento público de vagas na rede privada não é um detalhe menor; talvez seja um detalhe constrangedor para os seus elaboradores. Objetivamente, temos uma política consistente, de longa duração, que vem da época de Cardoso e que se consolida no governo de Lula e agora no governo Dilma.
É óbvio que no Brasil nós não temos uma rede pública de educação superior que atenda às demandas e necessidades sociais do país e contemple os anseios da juventude. A questão que nós temos que nos colocar é: frente a um fato concreto, que é o reduzido tamanho da rede pública de educação superior, qual a alternativa que temos? Na ditadura civil-militar, a alternativa foi ampliar, com subsídios públicos, a rede privada. Qual o resultado disso? A maior parte da juventude que hoje está cursando educação superior recebe uma educação que não pode ser caracterizada como educação superior. As pessoas concluem a graduação com uma formação extremamente deficiente, que não contribui para que a juventude possa ter uma interação virtuosa, crítica, criativa no mundo do trabalho. O pressuposto fundamental é a manutenção de uma divisão social do trabalho em que a maior parte da juventude vai desempenhar tarefas de trabalho simples — claro que Marx, quando criou essa categoria, chamou atenção de que esse é um conceito que tem que ser analisado historicamente; claro que o trabalho simples de hoje não é o mesmo de 200 anos atrás. Há, portanto, um horizonte de formação humana que pressupõe que a maior parte da juventude vai desempenhar tarefas simples, que não exijam um grau de escolaridade muito sofisticado. Então, na realidade, estamos não só perdendo a chance de alterar essa correlação do público e do privado no Brasil, no que diz respeito à educação superior, mas, ao contrário, estamos azeitando a máquina pública para operar a expansão privada. Trata-se, portanto, de uma opção pelo fortalecimento do setor privado. Isso tem um desdobramento, ao meu ver, muito grave. Eu não duvido de que, em alguns anos, nós vamos ter uma situação parecida com a do México, em que grande parte da juventude vai, inclusive, recusar esses cursos. Como hoje nós já temos uma evasão enorme nas instituições de nível superior do Prouni porque muitos jovens percebem claramente que aquilo é uma enganação.
É importante citar que a opção pelo setor privado desencadeia uma dinâmica que é incontrolável. É a dinâmica de um processo regido pela lógica de buscar lucro. Temos, nas instituições privadas, uma expansão que se dá em taxas sempre maiores do que a da rede pública. Já o percentual dos estudantes matriculados nas instituições públicas caiu em relação ao setor privado. Então, se nós tínhamos, nos anos 1990, cerca de 32% a 34% dos estudantes nas públicas, hoje são 22%. Então, empiricamente, essa afirmação de que estamos agora cuidando de um acesso à rede privada porque estamos expandindo a rede pública não é verdade. Percentualmente, a participação de estudantes nas universidades públicas no governo Lula é menor, inclusive, do que no governo Cardoso. Além disso, grande parte dessa expansão das públicas foi, digamos, muito precária com parte significativa dos cursos sem vocação universitária e sem uma estrutura universitária, como se a instituição pública fosse se moldando ao paradigma da oferta privada. Na realidade, o que nós temos é um processo paulatino de aproximação das instituições públicas com as instituições privadas. Um exemplo objetivo disso: a relação (quantitativa) de professor/aluno: a meta obrigatória, que é condição sine qua non para participar do Reuni, institui uma relação professor/aluno de 1 para 18, que é a mesma das instituições privadas mais degradadas, mais mercantis. O pressuposto de atendimento aos alunos é o mesmo das instituições privadas. Nós temos uma expansão enorme de cursos muito precarizados em campi no interior. Temos agora, inclusive, a medida provisória 525 , que permite que novos campi universitários tenham professores regidos pela CLT com contratos sem prazo definido previamente. Corremos o risco de termos um processo semelhante ao que aconteceu na Argentina no período Menem, que também teve uma expansão muito grande de instituições públicas, mas que não lembram nada o conceito de uma formação universitária: são escolões de terceiro grau. Claro que isso não significa que todos os estudantes estão tendo uma formação degradada. Há muita contradição, muita resistência e eu não tenho dúvida de que muitos professores estão se empenhando para dar a melhor formação possível. A Universidade Federal do Oeste do Pará, uma das novas, serve como exemplo. Lá, professores de história e geografia se formam juntos. Podemos perguntar se isso não lembra um pouco os estudos sociais da época da ditadura militar. E é um curso de curta duração, com apostila pré-definida, enfim, um modelo que se afasta completamente de uma concepção de formação universitária. Verificando in loco, conversando com os professores e com os estudantes dessa universidade, vemos que há uma clara percepção de que aqueles cursos são de baixa qualidade. Essa universidade não preenche as vagas. Como imaginar que uma instituição pública de um país com tão poucas vagas públicas não consegue sequer preencher suas vagas? É porque os estudantes estão percebendo que aquilo não vai lhes assegurar formação nenhuma. Já temos, inclusive, a recusa de estudantes a frequentar esse tipo de escolão, como aconteceu no México com o equivalente aos Ifets criados lá nos últimos 25 anos. Essas instituições cumprem um papel importante na política porque fazem parecer que há uma política de democratização do acesso, mas aqui vale aquela máxima do poeta Manuel de Barros de que às vezes as coisas crescem para menos. Não é verdade que o apoio ao setor privado é visto como uma solução transitória enquanto as condições para a construção de uma rede pública de qualidade estão sendo operadas. Isso não se confirma nem percentualmente nem nos projetos específicos de expansão, porque eles têm como pressuposto uma formação aligeirada.
Quais são as vagas do Prouni? A propaganda do ministério sobre o Prouni sempre mostra uma menina jovem, emocionada, cursando medicina socialmente orientada, que vai cuidar dos velhinhos, que realizou o seu sonho… Mas, das vagas do Prouni, só 0,6% são para cursos de medicina. A maioria dos cursos são frágeis do ponto de vista da formação técnico-científica. Eu me pergunto se esse subsídio público para as escolas técnicas privadas não vai seguir o mesmo modelo. Objetivamente, uma empresa educacional cada vez mais responde a imperativos capitalistas de lucro. Podemos dizer que até alguns anos atrás algumas instituições privadas eram de grupos familiares, tinham um certo compromisso com a sua comunidade e mantinham pelo menos resquícios de princípios educativos mais consistentes. Atualmente as instituições privadas cada vez mais são controladas por fundos privados de investimento, como o grupo Anhanguera, o Pitágoras e vários outros. Esses fundos, que controlam, por exemplo, a Universidade Estácio de Sá, querem saber de resultados. E certamente não vão investir em laboratórios mais sofisticados, com infraestrutura, pessoas qualificadas. Investem em cursos minimalistas, com apostilas pré-definidas e um forte componente de ensino à distância. E eu me pergunto se isso que está acontecendo nas instituições de ensino superior que vivem hoje sob os auspícios do Programa Universidade para Todos não vai se verificar também nas instituições de educação pós-médio. Eu creio que a evidência empírica que nós temos sobre a evolução das instituições privadas na educação superior muito provavelmente vai se repetir nas escolas técnicas. Que modelo de ‘inclusão social’ nós vamos ter com essas escolas? Será que não temos aqui um pressuposto de que pobre deve ter educação pobre? Ou de que os filhos dos trabalhadores pouco qualificados também serão força de trabalho de baixo custo, embora com um certo verniz? Eu vejo uma perspectiva ético-política muito conservadora nesse processo porque naturaliza a ideia de que o dualismo educacional é o imperativo da vida real e de que não temos como mudar isso. Então, se a vida é assim, vamos fazer dessa forma. E eu creio que todas as lutas democráticas do século XIX para cá na educação pública objetivaram implementar o princípio da escola unitária, ou seja, aquela escola que recusa a disjunção entre pensar e fazer, mandar e obedecer. E que, portanto, está em tensão com a divisão social do trabalho e com a expropriação de conhecimento dos trabalhadores pelo capital. Eu lastimo muito que no governo do PT esse tipo de política, que, na prática, implementa, sem dizer, um dualismo, seja a matriz política que orienta, motiva e inclusive propicia ganhos político-eleitorais. Basta dizer que o Prouni — talvez não hoje, mas nos seus primeiros anos — foi o programa de governo melhor avaliado pela população. É claro: você está acenando com a possibilidade de parcelas que estavam fora do acesso à educação superior terem acesso a ela. Mas o aluno que chega a essas instituições descobre que não está de fato numa instituição de ensino superior. É muito grave que o Estado feche os olhos para essa realidade.