Eu não sou seu negro – Um documentário necessário sobre o debate racial nos EUA

Por Priscila Guedes, diretora do DCE da USP e militante do Vamos à Luta

A história dos negros nos Estados Unidos,

é a história dos Estados Unidos. Não é uma

história bonita. (trecho do documentário)

Quando James Baldwin, romancista e ensaísta afro-americano, morre em 1987 – vítima da Aids -, deixa inacabado o trabalho do seu último livro “Remember this house”, um projeto de relatar as vidas e os assassinatos de três importantes ativistas na luta contra o racismo e em defesa dos direitos civis da população negra nos Estados Unidos: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. Suas anotações e trabalhos anteriores foram a base para o diretor e ativista haitiano Raoul Peck (que também dirigiu “Lumumba”, sobre o assassinato de um estadista congolês e “Abril Sangrento”, sobre o genocídio em Ruanda), produzir esse incrível documentário. “Eu não sou seu negro” (em inglês, “I am not your negro”), traz uma importante reflexão sobre o que significa ser negro nos Estados Unidos. Através de correspondências do escritor e um rico arquivo de imagens e vídeos dos quatro “personagens principais” do filme, Peck entrelaça suas histórias e suas ideias, e demonstra também a grande admiração que Baldwin tinha por cada um dos três ativistas mortos na década de 1960. Todos eles tinham menos de quarenta anos quando foram assassinados. Em uma carta ao seu agente, Baldwin relata as viagens que faria, como parte do projeto do seu livro, para visitar e entrevistar as viúvas e os filhos dos mesmos.

Refletindo o passado e o presente, o diretor traça um importante paralelo entre as mobilizações pelos direitos civis dos anos de 1950/60, com as manifestações atuais contra o racismo e a violência policial, desencadeados pelas mortes de jovens negros por policiais brancos, e que culminaram no movimento Black Lives Matter. Ou seja, a luta que James Baldwin, Evers, King e Malcolm travaram naquele período segue vigente hoje. A população negra dos Estados Unidos segue se levantando e resistindo contra o racismo, a repressão e as desigualdades.

“Os índios são os negros”

Remontando aspectos da infância de Baldwin, o documentário nos brinda com sua percepção, ainda criança, sobre o racismo e a diferença entre negros e brancos. Em um momento de grande sucesso dos filmes do gênero faroeste, onde o ator John Wayne era o grande herói branco que perseguia a matava os índios (retratado como vilões), ele percebe que os negros eram os índios do filme e Wayne não podia ser seu herói. Em recente entrevista sobre o filme, Raoul Peck afirma que os Estados Unidos “foi construído em cima de dois genocídios, o dos índios e o da escravidão. Nesse sentido, conseguimos entender como o jovem Baldwin conseguia se reconhecer no lugar dos índios nos “filmes de faroeste”.

Em uma das entrevistas que o documentário mostra, o escritor cita o seguinte: “Precisavam de nós para colher algodão, não precisam mais. Agora vão nos matar”. Esse era o entendimento que uma parte da população negra tinha e com razão. Afinal, mesmo depois do fim da escravidão, os negros eram segregados socialmente nos estados do Sul através das leis Jim Crow, eram explorados e oprimidos, vítimas do racismo, perseguidos e assassinados pela Ku Klux Klan.

Aos 24 anos, negro e gay, James Baldwin se muda para a França como se para fugir daquele estado de coisas posto em seu país. Retorna para os Estados Unidos em 1957. Já não conseguia apenas observar de longe o movimento que se desenvolvia naquele período.

A luta pelos direitos civis: Evers, King e Malcolm

No final de 1955, a atitude de uma mulher que enfrentou a segregação e se recusou a levantar do banco de ônibus entrou pra história. Rosa Parks virou símbolo da luta antissegregacionista. E o boicote ao transporte em Montgomery, Alabama, que se seguiu após a prisão de Rosa é um marco do movimento em defesa dos direitos civis e contra o racismo. Os anos de 1950 e 1960 foram marcados pela poderosa luta da população negra dos Estados Unidos que não aceitava mais ser segregada, agredida e assassinada apenas por sua cor de pele. Foi uma luta muita dura travada então e brutalmente reprimida na maioria das vezes, mas que soube resistir. O movimento negro daquele período conheceu distintas organizações, linhas de pensamento, líderes. Entre eles, se destacaram: Medgar Evers, Martin Luther King Jr. e Malcolm X.

Evers foi membro importante de distintas organizações de direitos civis e ajuda mútua: foi presidente do RCNL (Regional Council of Negro Leadership) e secretário da Naacp (Associação Naciomal para o progresso de pessoas de cor). Ajudou a organizar o boicote do RCNL, no Mississipi, aos postos de combustível que não permitiam que os negros utilizassem os banheiros. O slogan era “Don’t buy gas where you can’t use the reestroom” (Não compre gasolina onde você não pode usar o banheiro). Foi símbolo da campanha da NAACP para pôr fim à segregação da Universidade do Mississipi depois que seu pedido de admissão na Faculdade de Direito foi negado em 1954. Promoveu investigações públicas sobre o assassinato de Emmett Till, menino negro de 14 anos que foi morto por supostamente assobiar para uma mulher branca.

Malcolm Little, mundialmente conhecido como Malcolm X, era o quarto filho de oito irmãos. Quando tinha quatro anos a casa onde sua família morava sofreu um ataque da Ku Klux Klan. Aos oito, seu pai, que lutava contra a discriminação racial, foi brutalmente assassinado. Pouco tempo depois sua mãe foi internada, vítima de um colapso nervoso, o que separou os oito irmãos em lares adotivos e orfanatos. Ainda jovem, Malcolm se envolveu com o crime, furtos, roubos, tráfico e assalto à casas. Em Boston, foi pego condenado à prisão por 10 anos. Quando esteve preso conheceu as ideias de Elijah Muhammad e a Nação do Islã (NOI, na sigla em inglês). Converteu-se ao islamismo e fora da prisão se tornou um dos principais líderes e porta-voz do NOI. Converteu milhares, inclusive Cassius Clay, ou Muhammad Ali. Malcolm discordava frontalmente da ideia da não violência e resistência pacífica defendida por Luther King. Para ele, os negros deveriam se defender por qualquer meio necessário. Além disso, era bastante crítico à luta antissegregacionista, pois entendia que isso não resolveria os problemas da população negra. Rompeu com o NOI em 1964 e, posteriormente, fundou a Organização da Unidade Afro-Americana. Esse rompimento se reflete numa mudança importante do pensamento de Malcolm X, que passa a identificar no capitalismo, e não mais no homem branco, a causa dos problemas de todos explorados e oprimidos. Muitas de suas ideias foram de grande inspiração para os Panteras Negras.

Martin Luther King Jr.m foi pastor protestante e destacado orador que mobilizou milhares de pessoas pregando a não-violência na luta pelos direitos civis. Foi um dos líderes do boicote ao transporte de Montgomery, e por isso foi detido. Ajudou a organizar e esteve à frente de importantes marchas daquele período, como em Selma, Alabama. Em 1963, convocou uma marcha em Washington, que reuniu mais de 250 mil pessoas, e onde proferiu seu famoso discurso “Eu tenho um sonho…”. Malcolm X criticou duramente que essa marcha que deveria ter sido um protesto, virou quase uma celebração. Nos últimos de sua vida, King se preocupava cada vez mais com os problemas da pobreza e da desigualdade racial. Desde 1965, criticava a atuação do governo dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã e, em 1968, se posiciona definitivamente contra a guerra. Quando foi assassinado, organizava um acampamento em Washington.

Evers, Malcolm e King morreram antes dos quarenta anos. Foram assassinados em 1963, 1965 e 1968, respectivamente. O assassino de Evers só foi condenado culpado em 1994. Durante sua luta foram ameaçados, sofreram atentados e investigados rigorosamente pelo FBI. Esses assassinatos, assim como de outras importantes figuras como Fred Hampton dos Panteras Negras, em 1969, deixaram o movimento negro daquele período sem seus principais líderes.

De Rosa Parks ao Black Lives Matter: não há mudança sem o enfrentamento

Se qualquer homem branco diz: ‘Dê-me liberdade ou a morte’, o mundo branco aplaude. Quando um negro diz exatamente o mesmo, ele é julgado criminoso e é tratado assim. E se faz o possível para esse negro mau ser um exemplo e não haver outros. (James Baldwin em entrevista no “Dick Cavett Show”. Trecho do documentário)

O fio de continuidade que Peck traça em seu documentário entre as lutas dos anos 1960 e as lutas atuais dos negros nos Estados Unidos é fundamental para entendermos que, apesar das reformas que garantiram o fim da segregação racial, os negros seguem sendo oprimidos, explorados e assassinados. A desigualdade social entre negros e brancos não diminui e o racismo continua presente. A partir da década de 1970, a segregação foi substituída pelo encarceramento em massa da população negra. E a própria eleição do primeiro presidente negro não melhorou em nada a vida dos negros nos Estados Unidos. Como afirmou Malcolm X, “não há capitalismo, sem racismo”. Em nenhum momento do documentário se postula a luta contra o sistema capitalista como a saída para os negros estado-unidenses. No entanto, defende que não pode existir mudança sem o enfrentamento. E a reflexão que o diretor apresenta sobre o passado e o presente mostra que a população negra continua lutando pra poder sobreviver. Dessa importante reflexão que o documentário faz, podemos concluir que: apesar das conquistas democráticas, a situação do negro nos Estados Unidos não mudou; a mudança só virá com o enfrentamento e a derrota do sistema capitalista que explore e oprime homens e mulheres negros, e a construção de uma nova sociedade.